
Ian MacKaye (Fugazi) – no livro “Não devemos nada a você”, coletânea de entrevistas da revista Punk Planet.
Achei muito interessante esse trecho da entrevista do MacKaye, porque ele acaba abordando um ponto que pra mim tem um paralelo direto com muito dos problemas que vejo na cena independente brasileira, em geral, e na curitibana em particular hoje. É aquela coisa, todo mundo quer posar de artista, mas ninguém quer se incomodar com tudo o mais que envolve o fazer artístico, ou com tudo o que é relacionado com o antes e depois de você subir no palco. A coisa chegou num ponto em que neguinho quer ter banda, quer tocar, mas nunca tem tempo pra ensaiar, pra trabalhar aquilo, marcar show, lidar com as burocracias naturais pra, por exemplo, apresentar um projeto, buscar apoios, patrocínios. A maioria ainda parece querer que outros façam por eles o que eles deviam fazer por si mesmos. E com isso, acaba deixando de aproveitar as poucas oportunidades que existem. Pior, quer fazer música, quer tocar junto, mas não quer se relacionar, não é capaz de reservar um tempo pra tomar uma cerveja junto, conversar, bater papo, falar merda. É o mundo do "virtual", dos relacionamentos "on line", da vida higienizada e sem vida.
Como ninguém é obrigado a trabalhar de graça para os outros, e a maioria das bandas não gera renda suficiente para pagar um produtor/empresário, temos uma equação que não fecha.
Isso também se reflete em uma quase total falta de comprometimento com as iniciativas que poderiam potencializar a cena, e acabam se esvaziando já que se nem os músicos tem interesse no que está acontecendo, como esperar que o público em geral o faça. Isso me lembra também um trecho da recente entrevista do Rómulo Froes no Scream Yell:
“E eu fico puto porque nenhum cara vai ao show do outro. Ninguém foi me ver tocar até hoje. Com exceção ao Bruno, que é muito meu amigo, e tem uns caras novos que eu conheci agora. Curumin nunca foi ao meu show. Catatau nunca foi. Andréa Dias nunca foi. Leo Cavalcanti também não. Só estou falando de todos que eu fui. Porque, cara, você tem que ir! Por interesse artístico, pra ajudar a cena, pra sair de casa. Vai ver seu amigo, porque se você não for ele não vai conseguir tocar mais. Eu fico: “Moçada, tenho uma festa no CB, vamos lá, a casa paga cachê bacana, vai lá ver, vê o bar, vê que a festa é legal, depois você vai lá tocar”. Eu acho foda essa coisa de um não ver o show do outro. A galera gosta tanto que toca junto, grava disco, mas eu acho que tem que ser mais do que isso. Tem que prestigiar. Você não pode ir lá só quando for gravar o disco. Vai lá porque você gosta, e fala pros outros. Isso eu sinto falta, de neguinho não fazer a cena virar.”
O que o Rômulo fala sobre a cena de SP é um problema generalizado que acontece em todo o País, inclusive em Curitiba. Digo isso de carteirinha, porque cansei de ver bandas que iam tocar no Rock de Inverno, e que tinham entrada franqueada em todos os dias, só aparecer no dia e na hora que ia tocar, e muitas vezes, depois disso, virava as costas e ia embora. Ou seja, não se interessava sequer de prestigiar o evento do qual elas faziam parte, e conhecer as outras bandas que iam tocar no mesmo dia que ela. Acho isso uma puta duma demonstração de desinteresse, de egocentrismo explícito, e de falta de comprometimento que diz muito sobre o estado atual das coisas. Repito, se nem os músicos se interessam em conhecer e prestigiar a cena e seus pares, como esperar que o público queira? Ou a mídia, de quem tanto os artistas cobram mais atenção?
Isso sem falar nas bandas que vivem fazendo discursos empolados de “temos que nos unir”, "temos que nos organizar", "temos que ser profissionais" e tal, mas não são capazes de distribuir um cartaz ou uma filipeta para divulgar o evento em que elas próprias estarão. Aí fica fácil. Aí até eu quero ser artista.
Desde cedo percebi que se eu quisesse conquistar algum espaço com minha música, teria que eu mesmo que arregaçar as mangas e partir para a luta. Não tem gravadora, a gente cria um selo, ninguém chama a gente pra tocar, a gente produz os nossos próprios shows, ninguém dá atenção pra o que a gente faz, a gente se junta com mais gente que tem a ver e faz um festival. E mesmo que não tenhamos conseguido tudo aquilo que gostaríamos ou ingenuamente sonhávamos em algum momento, não posso reclamar, pois tudo o que a gente fez foi muito bem recebido, teve atenção, repercutiu e foi muito mais longe até do que a gente imaginava. E isso só aconteceu graças a muito trabalho, iniciativa, da amizade e parceria e esforço conjunto de um monte de gente, ao invés dos costumeiros choramingos, coitadismos e teorias conspiratórias pra justificar a inércia.
Cansei de varar noites gravando CD, imprimindo, cortando, dobrando e colando capas de discos meus e de outros. Perdi a conta dos discos de outras bandas que eu fiz cópia pra mandar pra jornalistas, produtores, etc. E fazer isso nunca foi um peso, um problema, um sacrifício. Pelo contrário, sempre fiz isso com uma baita alegria no coração de saber que eu tava fazendo parte daquilo, vivendo o meu tempo, escrevendo a minha história e a de um monte de gente que eu admirava. Pois como diz o MacKye, isso tudo pra mim era parte inestimável e inseparável do processo criativo e me dava tanta satisfação quanto estar em cima de um palco se apresentando.
Aliás, sempre disse já na época do OAEOZ que gostava mais de ensaiar do que de fazer show. Pra mim era um prazer. Música pra mim sempre foi uma atividade gregária, essa coisa de juntar os amigos e fazer um som, em primeiro lugar. De tomar umas e fazer um churras, e uma jam. Ensaiar pra mim sempre foi a melhor coisa, mesmo quando a gente tinha que ensaiar as 9 horas da manhã de uma quarta-feira, e depois sair correndo pro trabalho. Aquilo pra mim ganhava meu dia. Mais do que uma banda, a gente era uma turma de amigos que curtia estar junto fazendo aquilo, vivendo aquilo. Hoje tá todo mundo ocupado demais com os MSNs, os orkuts, os twitters da vida pra se relacionar de verdade. Alguma coisa se perdeu.
Quando você pensa no pessoal da Tropicália, por exemplo, vê a diferença de atitude, como o próprio Rômulo aborda rapidamente na entrevista. Os caras tavam sempre juntos, e sempre trabalhando em parceria. O Caetano gravava músicas do Gil, que gravava músicas do Caetano, que tinham suas músicas cantadas pela Gal, pela Bethânia, pelos Mutantes, que tocavam em shows do Caetano e do Gil, que falavam dos Mutantes nas entrevistas, etc.
Se a gente for pensar no que ficou conhecida como “Vanguarda Paulistana”, apesar de ser calcada em uma vanguarda paranaense (Arrigo e Paulo Barnabé e Itamar Assumpção, etc), a mesma coisa. Itamar tocava baixo na banda do Arrigo, que tinha o irmão na bateria, que também tocava com o Itamar, etc. Pensando no rock dos anos 80, você via a Legião tocando Plebe Rude nos shows, o Paralamas tocando musicas da Legião, e mesmo depois, já nos anos 90, o Renato Russo usando camiseta do Pato Fu nas fotos para a imprensa. Enfim.
Lembro ainda de quando conheci a cena que rolava no 92 graus, no início dos anos 90, e como havia um sentimento de “comunidade”, de todo mundo se conhecer e de pertencer aquele momento, de tocar junto e ver o show do outro, mesmo que não fosse o seu estilo preferido. O pessoal da Reles via os shows do Boi Mamão, que curtiam os do Magog, que tava lá vendo o Acrilírico. A gente mesmo, eu e a Adri, cansamos de ir ao 92 sem nem saber quem ia tocar naquele dia, e graças a isso conhecemos um monte de coisas diferentes que normalmente não iriamos ver, de Cervejas a Pinheads, e muitos outros.
Hoje parece que tudo virou um clubinho “vip” excludente, um gueto. Todo mundo fechado em seu próprio mundinho de pretensão e arrogância, e falsa autosuficiencia. Neguinho é fã de hardcore, então só vê show de hardcore, o indie só vai no bar dos indies, headbangers só se misturam com headbantgers e daí por diante. O resultado é que a cena toda se fragmentou e se enfraqueceu, se fragilizou, em pequenos grupos isolados que não se relacionam.
Enquanto as pessoas não mudarem de atitude, começando pelos próprios músicos, e se interessarem pelas coisas que estão acontecendo em volta delas, ao invés de ficar apenas lambendo o próprio umbigo, nada vai mudar. Veremos cada vez mais espaços como o 92 se fechando, bandas acabando, pessoas desistindo pelo meio do caminho.
Como disse a Adri, onde estão os novos produtores? A turma que ia fazer e acontecer e mudar tudo? Cansei de ouvir discursos vazios de gente que achava que ia reinventar a roda e na primeira pedra, caiu de boca no chão e não se levantou mais. Enquanto isso, quem ainda continua fazendo as coisas por aqui? Os mesmos “veteranos” de sempre, de gente de gerações ainda anteriores à nossa, como o pessoal da Grande Garagem/BAAF, do JR, do Ciro Ridal, ou de gente contemporânea à nossa turma, de gente que já deveria estar "superada" e substituída por uma nova geração de produtores/iniciativas. Um monte de novas iniciativas que surgiram desde então, naufragaram na primeira onda contrária. O que é uma pena. Alguma coisa está errada. Posso não saber exatamente o que, nem como mudar isso, mas não me sinto nem um pouco otimista. Fala-se tanto em internet, essa onda virtual e tal, mas em certas coisas – eu diria nas mais importantes – nada substitui a presença real, física. Porque sem ela, não há comprometimento, e sem comprometimento, tudo o que fica são discursos vazios, e sonhos frustrados, abandonados pela metade.
Apesar de todo o cansaço, continuo sendo um sonhador. Acho que temos tudo pra virar o jogo, se quisermos. Acho que tem uma galera nova por aí que pode fazer isso. Mas é preciso iniciativa. Do contrário, nos tornaremos todos pessoas distantes e amarguradas. Uma geração sem vontade. Incapaz de dar o primeiro passo e sair da casca.