3/22/2010

Quando eu menos esperava a vida não falhou em surpreender


Faz dias que não pego o fone e ao ligar o aparelho é Jair Naves que ta tocando. O EP Araguari. Essas canções me acompanharam ao Uberaba, em ônibus lotados na ida, e vazios, na volta. Na ida, me distraíram das freadas e da algazarra da piazada; na volta, nada existia ao redor e pude até rabiscar apressada no primeiro pedaço de papel que apareceu na mão.
A força devastadora da música do Jair Naves já conhecia do Ludovic. Agora, ele joga na minha cara esse disco solo. Não pensei que seria possível, mas é ainda mais devastador que o punk raivoso que ele destilava sob a ‘proteção’ da banda. Aqui, o tipo de força que arrasta é outro. Também confessional, mas de um jeito diferente. A primeira palavra que vem a mente é mais calmo, mas não é isso não. É muito mais pessoal. As letras tocadas pelo Ludovic já traziam os seus (nossos) medos, confissões, estampados a ferro quente em cada braçada, em cada soco que ele desferia, na gente e nele mesmo, se debatendo em sua própria música, em suas próprias confissões, questionamentos e revoltas. Possuído por sua própria música que também nos possuía.
Mas lá, havia mais raiva primal. Aqui, há outros sentimentos. Cansaço, talvez. Uma pausa. Um acerto de contas – ele não ta cuspindo na cara de ninguém as verdades, ofensas merecidas. Agora ele se recolheu. Está cara a cara com ele mesmo – com o que ele viu em algum espelho que só ele vislumbra. Mais sutil, uma casca um tanto mais envelhecida – com aquilo de bom que o passar do tempo traz e também com suas marcas, bem a fundo. Como se passada a ansiedade, a euforia, a excitação e a certeza juvenis, que fervem a gente, sobrassem agora alguns escombros pra mostrar “que a vida passou e eu caí em nostalgia, mesmo de coisas que eu mal vivi, que dizer da inocência que eu deixei (...)” pela vida, no que foi feito dela.
Se antes ele estava em cima do palco com uma puta de uma banda de companheira, agora ele tá sozinho: num fim de noite sentado na beira de uma calçada, resto de cerveja quente dentro de um daqueles instantes cheio de uma certa sobriedade que só na bebida encontramos a coragem - e não se trata de uma escolha - pra ver.
Sei lá... To falando dele, de mim ou de nós? Vai saber..
Não sei para ele, mas pra mim isso lembra outra década chegando – e enfrentando a que acaba! Cara a cara com o que restou dela.

“E agora? O que é este disco?”, rabisquei no pedaço de papel de pão. Mais um acerto de contas com a vida como o são alguns discos? (Ou parecem ser). Um (outro) desabafo de solidão. Um doloroso e saudoso olhar pra trás a sentir saudade até do que não viveu. (Ah, mas eu vivi muito, e bem. Então o que é este disco?).
Um confronto, inevitável, com o que viveu. E o ver no espelho essa outra pessoa que (invariavelmente?) viramos.
Esses anos depois... um voltar pra dentro dos silêncios novos que largamos no caminho. E que nos habitam pra sempre, mesmo que os esqueçamos por alguns dias, instantes, anos, meses. No final dá tudo no mesmo, quando eles voltam.
E às vezes mostram suas mãos apertando a garganta
Por um fio
Bagunçados pelos amores que vemos chegar ao fim
(amores desperdiçados e inconfessos) guardados em diários de letras tão debilmente infantis
Araguari, curitibanos, paranavaí, irati, curitiba ou coronel vivida (não importa)
Com seus desbravadores meninos (e meninas)
Certos de suas certezas, e com seus céus que ficaram perdendo a gente, enquanto nós nos encontrávamos e nos perdíamos por nossas próprias contas.
Mais um disco que não consigo ouvir impunemente.

Começa assim: com uma reza de santa Maria, vozes de palavras duras. Um filme. Simplicidade musical para deixar as palavras se mostrarem em toda sua força.

(adri)

confira abaixo as letras de "Araguari I" - disco solo de Jair Naves.

Araguari I
“As lembranças que eu guardo de Araguari resumem-se ao dia em que fugi,
Caçado de perto por uma multidão, decidida a fazer justiça com as próprias mãos.
Ecoavam sermões pelas ruas dormentes, ninguém nada
tudo impunemente
O abandono é a pior traição, no fim das contas hoje eu te dou razão
Em minha defesa eu apelo ao obvio eu era novo e sem temor, eu tinha o mundo ao meu dispor
Só que a vida passou e eu caí em nostalgia mesmo de coisas que eu mal vivi, que dizer da inocência que eu deixei em Araguari.
Araguari o que foi que aconteceu, fui eu que te pedi ou você que me perdeu?
Foge a minha compreensão, foge a minha contenção mas eu te dou razão
O fato é que eu não sou mais quem eu era antes, eu voltei envelhecido e hesitante, hoje eu quem cuido dos meus pais e as crianças da nossa rua já não somos mais.
Já não somos mais.
Mas eu sinto saudade da nossa banda de cada palco em que pisei
de cada nota que eu cantei. E ainda me dá um nó na garganta pensar no sonhos que eu sonhei, na leveza dos amores que eu desperdicei
Ah, as brigas que eu comprei, meus amores inconfessos
... os sonhos que eu sonhei.”

E depois vem
“Silenciosa”
“passou, passou
Um dia eu me conformo e paro de me culpar
Passou, acabou
Sabe quando você sente que não vale mais a pena lutar, se não deu certo com a gente, acho que nunca vai dar.
Passou, passou
um dia eu me acostumo e paro de te importunar
Passou, acabou
Sabe quando você sente que não vale mais a pena lutar
Se não deu certo com a gente acho que nunca vai dar
Prometo que não demoro, quando estiver pronto eu te aviso
Se bem que eu não incomodo, pode ir agora que eu já não ligo
Só vê se não esqueceu nada e vê se não volta mais
Enquanto eu não me recobro, enquanto eu não estiver
bem
em paz
A cama ficou espaçosa, nosso quarto ficou mais frio
A casa silenciosa não me serve mais como abrigo
E foi consensual nós nem sequer discutimos
Tudo tão civilizado
Nem parecia comigo
Nossos amigos ainda questionam o que foi desta vez, qual a gota d’água, como eu consegui
afastar você de mim
Deve haver em tudo isso alguma lição, algo a ser aprendido, uma compensação pro quanto nós nos ferimos
pro quanto nós nos ferimos

Passou, passou
Um dia eu me conformo e paro de te culpar.
Passou, acabou
Sabe quando vc sente que não vale mais a pena lutar
Se não deu certo com a gente acho que nunca vai dar

E depois: De branquidão hospitalar, queimando em febre eu me apaixonei

“Num cômodo abafado, de branquidão hospitalar, via-se um mar de rostos borrados tentando te acordar. Você zombava desse empenho, da proteção que eu ofereci,
um demônio enfermo de quem eu não consigo me despedir
Delirante queimando em febre, você buscou a minha mão
A esse poder que você exerce eu nunca soube dizer não
Ela viajou como se possuída por um espírito ruim, dizendo prepare-se pra uma guerra eu não respondo mais por mim
E eu tão impressionável
me apaixonei
Eu me apaixonei
Eu me apaixonei.
O que em mim vc reconhece, eu reconheço em você
E no gosto da sua pele, as fraquezas que eu tento esconder
Quando eu menos esperava a vida não falhou em surpreender
E nada mais me entristece agora que eu encontrei você
Quando eu mesmo esperava a vida não falhou em surpreender,
nada mais me entristece agora que eu encontrei você
Não estou só.”

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2 comentários:

Ivan disse...

pra mim, o melhor disco de 2010 até agora. belo e emocionante texto também.

Anônimo disse...

Poizé, Jair sempre nos surpreendendo...concordo com Ivan.

Beijos ...sodad
Linari