5/10/2006

Essas recordações me aquecem

Meu sono me largou cedo hoje, nem tinha o dia clareado ainda e já estava eu abraçada com o travesseiro ouvindo o piar dos pássaros madrugueiros. Até lembrei de repente, dos tempos de pular ainda noite da cama pra abrir o bar, junto com minha doce e companheira vozinha. Éramos nós duas começando o dia no bar do ‘seu Perin’, o meu amado avô.
Posso me sentir lá outra vez, o cheiro da lenha começando a queimar no fogão, a chapa limpa, fumaça discreta fumegando; o calor começando a aquecer e se espalhando pela casa ao som de uma música caipira que saia do radinho de pilha ligado na tomada, sintonizado na rádio Coroado (que ainda ta lá, mas agora é FM, se não me engano) em cima da geladeira. Era uma cônsul vermelha a geladeira da casa onde cresci.
Dali a pouco o cheio do café é que tomaria conta, enquanto os primeiros ruídos dos caminhões chegando para levar o povo pras lavouras de alho (é difícil esquecer aquele cheiro – o do alho, to falando agora).
Eu já estava com a porta do bar aberta. Nem sempre era eu quem o abria, mas sempre que abri tive que controlar um certo medo do que havia depois da porta. Coisa de criança ter medo assim – mas desde pequena não me dei outra chance que não a de encara-lo. (Lembro muito bem, que via “fantasmas” no trajeto entre o bar e a cozinha de casa – eles eram juntos, mas se passava por um corredor entre um e outro. E eu me obrigava: vai lá e olha atrás da porta pra vê como num tem nada ali. Antes um pouco de abrir o bar pedia a proteção das ‘entidades do bem’, que foi como aprendi, de seu ‘destranca rua’ –quem sempre ganhava uns goles de pinga pra melhor cuidar da gente - do meu querido ‘preto velho’. Foi as bênçãos de algumas “entidades” que vivi a primeira etapa da minha vida).
Voltando ao café, o café com mistura ficava pra depois, antes era preciso preparar as marmitas de quem pegaria no batente sob o ar gelado em cima de uma caçamba, os bóia-frias, com suas cadernetas de contas anotadas. Eles levavam na bolsa café com leite, pão com salame, lembro bem.
O meu lanche favorito era o bauru, que minha vozinha fazia com pão de leite e queijo da roça (eu não tinha idéia de que é algo sofisticado com tantas variações!), feito direto na chapa do fogão a lenha, prensado por uma chaleira que sempre tinha água quente. Na mesma chapa que fazia um gostoso pinhão, deixando marcas do seu calor na casca e espalhando aquele cheiro que aqui no Paraná o povo também conhece muito bem.
O café para acompanhar vinha com graspa para esquentar o corpo pequeno que logo encararia o horário escolar subindo um imenso morro, não raras vezes, coberto pela geada que fazia deslizar de volta três passos em cada um que se conseguia dar.

Era mais ou menos assim que meus dias começavam e foi deles que senti saudades hoje, meio dormindo ainda. Quis outra vez minha Vó Ina ao meu lado ou me esperando na cozinha com seu avental e vestido florido, fazendo tudo por mim – inclusive não me deixando ver televisão. Ou levando uma porção de brasa num panelão para aquecer meus pés gelados desde criança, preu não ficar tão gelada no bar nos dias mais frios.
Fui de volta praquele quarto que dividia com eles, parede na parede do bar e o barulho dos homens jogando sinuca, ou cartas: pife ou canastra, não truco, que aquele povo era muito brabo e esse jogo era briga quase certa e as brigas lá eram sempre muito feias de se ver e eu vi algumas...
Essas recordações me matam, canta o Rei – e tantas vezes ouvi essa triste música pensando nisso tudo, depois que vim pra Curitiba. Mas, fazia tempo que elas não me acertavam assim. Claro que não dormi, pulei da cama e rabisquei algo parecido com o que você ta lendo. Mesmo agora, dois dias depois desse despertar, é impressionante, como tudo volta a tona, só que de manhã, no silêncio do dia que ainda não começou pra maioria, é tudo tão mais forte. E o mais incrível de tudo é a nitidez das sensações, das lembranças, dos cheiros, dos medos, dos barulhos, do amor e do carinho que recebi, e, principalmente, dessa saudade tão monstruosa que nunca mais vai passar.

Adri Perin

2 comentários:

Anônimo disse...

bonito

Anônimo disse...

massa Adri, bonito mesmo!!! Suas descrições colocam a gente por perto das lembranças....ah, temos boas novidades, precisamos conversar....IVANZERA, cê me ligou? cheguei a pouco em casa...apresentei minha pesquisa e deu tudo ceeeeerto....huhhhuhuh....abrax pros dois!