5/22/2013

Tragada pela fúria ruiva


Fui tragada, mais uma vez, por um livro. Só adiante das 400 páginas de Van Gogh – A Vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, é que me deparei  com a primeira referência ao que ficaria conhecido como a marca do pintor. Logo que vi o desenho “Caminho da Praia”, um nanquim sobre papel, que restou apenas na versão de uma carta enviada a Theo, pensei: opa, aqui está o começo daquele movimento das pinceladas que provocam um turbilhão desde a primeira olhada. Logo em seguida, os biógrafos comentam: “Estando à vontade por ser ‘um rabisco informal’, Vincent captou o cenário em traços turbilhonantes de pena, aos quais faltavam apenas as pinceladas que viriam no futuro”. Fico olhando maravilhada e pensando que esta obra de arte primorosa só existe hoje como ilustração de uma carta, cheia das observações do gênio ruivo.


Observem. Pra mim, a essência já estava ali, no meio de pilhas e pilhas de frustrações, contradições, e da mais pura rebeldia à ordem, familiar, estabelecida e também toda a convicção, apesar das vicissitudes que encarou com suas escolhas sem direito a concessão alguma.  

E diante desta descrição, me pego novamente pensando na minúcia de uma boa biografia. Que trabalho magistral da dupla Naifeh e White Smith! A cada página me surpreendo com os esmiuçar das pistas vastamente deixadas por Vincent (não estou conseguindo chamar de Van Gogh, por ora, imagino que porque nesse ‘mundo’ em que estou mergulhada, vários van gohs figuram, comerciantes de artes, pastores, ‘gente de sucesso’ que execrava Vincent). Mesmo que em alguns momentos fique confusa com a profusão de informações que vão e vem no tempo, às vezes se repetem, estou gostando muito da leitura, que atiça a curiosidade. Precisaria de outra vida para que eles fizessem outro trabalho assim. Quanto tempo, quantas cartas foram lidas, documentos consultados, pessoas ouvidas... tem depoimentos de camponeses anônimos que lembram do pintor louco, filho do pastor, que assustava os camponeses ‘querendo ser um deles’ e os querendo como modelos. Se perdendo em meio as charnecas holandesas, completamente possuído pelo desenho e por suas neuroses familiares e com uma aparência maltrapilha destoando do status da família bem considerada de comerciantes de artes. A tradução de Denise Bottmann é igualmente apaixonante. Também me desperta muitas curiosidades no meio das reflexões provocadas pelo próprio artista. Tenho cá comigo que é preciso ser tão bom quanto o autor pra fazer uma tradução com tal grau poético e informativo. Até porque, mesmo sem ter lido “Cartas Para Theo”, pelos trechos usados pelos biógrafos, já fica claro que Vincent “estudou” desenho e pintura também enquanto se derramava em cartas a todos, especialmente ao irmão mais novo. A forma como ele “explica” o que quis fazer, como “devem” ser os desenhos ou pinturas é tão intensa e passional quanto sua obra – aliás, hoje em dia isso faz parte de sua obra.

1883 é o ano do “rabisco da carta a Theo” e também o ano em que ele dá uma guinada na sua vida e na “arte ocidental”, reconhecendo ao irmão mais novo que “pintar tem sido mais fácil para mim”, começando a romper assim sua devoção doentia pelo desenho. Mesmo nos desenhos que ainda faria já se nota elementos de pintura, estudos aplicados aos desenhos que ele tanto amava.

Esse é outro desenho, de 1884, que também me deixou boquiaberta: "Vidoeiros Decotados”, um dos cenários da região onde viviam os pais de Vincent e Theo, cheias dos nós criados pelas podas para fortalecê-las, nós nos quais Vincent via história e vida pulsando e davam a aparência sofrida com a qual se identificava tanto. Impressionante, não é?! Como é que ele era criticado por estes desenhos “não comerciais” é o que me espanta – já era a época do impressionismo que ele desancava pelo excesso de luz por todos os lados. Aliás, chama muito a atenção o fato de que Vincent Van Gogh ignorou por completo várias movimentações artísticas que estavam acontecendo na Europa, enquanto se debatia com a dor da rejeição que ele mesmo só fazia aumentar, desajeitado que era com a vida "em sociedade".
 A grande virada viria mesmo em outubro de 1885, diante de dois quadros, no  Rijksmuseum, em Amsterdam.
Diante da obra A noiva Judia, de Rembrandt, Vincent pasmou. O amigo que o acompanhava simplesmente percorreu o resto do museu sozinho porque não conseguiu tirá-lo da frente da pintura. Conta que voltava ao lugar e lá estava Vincent “ora sentado, ora em pé; ora unindo as mãos em devaneio, como numa prece, ora examinando atentamente o quadro a poucos centímetros de distância, ora recuando e afastando as pessoas que lhe atrapalhassem a visão”. Que descrição magnífica... ela se apodera de mim, também, e fico profundamente emocionada. De novo, lembro do meu próprio deslumbramento nas primeiras vezes que vi pinturas  que eram obras de arte de verdade. Chorei quando fiquei diante de um Monet e não conseguia, nem queria, mais sair daquele lugar. Tenho essa sensação a todo momento neste livro e acho que nesta reta final será mais ainda, pois imagino que agora o caminho que levou à pintura será todo o mote. Tenho que parar e pensar sobre o que li. Sinto vontade de ligar o computador e procurar sites com ilustrações para este texto, com links para os museus... mas é muito cedo e está bem frio, não consigo fechar a página e passo pra outra e outra...
Pouco adiante, mais um momento para parar e pensar, quando Vincent se entrega à pintura defendendo: “pinte num impulso só!”. “A única maneira ‘sadia e viril’ de aplicar a tinta na tela é, pontificou ele, “era lançá-la sem hesitação”. Sempre nas cartas ao irmão Theo e no seu tom habitual, completa e absolutamente passional.  Palavra após outra deste trecho vou fazendo conexões com o mais famoso dos beatniks e sua escrita automática.
Novamente entusiasmado pela pintura, Vincent passa então a rever seus escombros e misturando definitivamente vida e obra – e começando se imortalizar, sem saber – passa a pintar “lugares” com significados pesados de sua vida familiar, remoendo reminiscências de suas frustrações e traduzindo seus sentimentos, seus rancores, suas dores, suas frustrações e medos inconfessos, para as camadas de tintas e pinceladas que o identificariam no futuro.
E, sem meias palavras, já vai direto na ferida e pinta a igreja abandonada onde está o cemitério em que foi enterrado o pai e a bíblia que pertencera ao pai pastor e fora deixada não para ele, o primogênito incômodo da família com prestígio, mas para o mais novo, bem comportado e bem sucedido Theo, mortificando ainda mais o espírito já magoado de Vincent.
Torre da igreja Velha de Nuenen, óleo sobre tela, de junho-julho de 1885, imagem da internet. Se existe neste livro algum detalhe a lamentar, é o fato de algumas imagens estarem em preto e branco. Com certeza, por questões econômicas editoriais. Até achei algumas dessas imagens aqui no amigo Google, mas depois de ler como Vincent se sentia em relação a cores, a claro e escuro, às pinceladas e tudo mais, não posso ser leviana. Na internet, cada imagem tem um conjunto de cores completamente diferentes!!!  Uma afronta à Van Gogh.
Imagino que este seja o melhor link para conferir de verdade, por aqui, os trabalhos dele: http://www.vangoghmuseum.nl/vgm/index.jsp?page=425&lang=en Estou muuuito curiosa para acompanhar o comportamento de toda família Van Gogh, aos quais, diga-se, ele não facilitou nem um pouco a vida. Ao que tudo indica, Vincent vai, agora, pintar muito das imagens que desenhou e assim vai registrar a sua vida, porque realmente taí um cara que ele se cobriu de tinta, chafurdou em todas as suas contradições e fez um ‘diário’ em forma de arte. Atormentado sem dúvida, mas indiscutivelmente, por mais clichê que isso possa soar, um daqueles seres que colocou a arte num outro patamar também. Não é acaso a sensação de ser tragada para dentro de suas obras. Tenho cá comigo, que era isso mesmo que Vincent Van Gogh queria: nos tragar a todos para dentro da realidade que ele construiu e que encontrou na pintura sua melhor tradução. Em tempo: com exceção da imagem citada como sendo da internet, as outras são do livro Van Gogh - A Vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, da Companhia das Letras.

Nenhum comentário: