6/02/2006

Tateando em busca do elo perdido...

Paulo Barnabé
Cada vez mais me convenço de um dos grandes problemas da cultura paranaense não é a falta de identidade cultural do Estado, mas a falta de consciência dessa identidade, por absoluto desconhecimento sobre a nossa história e sobre a história de nossa produção cultural. É o velho clichê de quem não conhece o seu passado não tem futuro. E um dos motivos para esse desconhecimento é justamente a dificuldade de acesso as informações sobre essa história, seus personagens e realizações. Por isso, quando acontece da gente topar com um livro como “Na boca do bode – entidades musicais em trânsito”, de Fabio Henriques Giorgio, é inevitável ser assaltado pela sensação de descoberta e revelação de algo que ao mesmo tempo está tão próximo, e tão obscurecido pela desinformação. O livro se propõe a contar a história da geração que ficou conhecida como “Vanguarda Paulista”, mas que na verdade foi gestada aqui no Norte do Paraná, tendo Londrina como epicentro. Geração essa que deu ao Brasil nomes como os irmãos Arrigo e Paulo Barnabé e o “Nego Dito” Itamar Assumpção – responsáveis por uma verdadeira revolução na música brasileira, ao desafiar os grilhões dos formatos tradicionais de canção, injetando atonalismo e experimentalismo na música popular, chocando tanto acadêmicos quanto o público médio, e deixando a mídia desconcertada. O marco inicial é o show realizado por eles, tendo como produtor o hoje escritor Domingos Pelegrini, em março de 1973, no Teatro Universitário de Londrina, e que já trazia em seu repertório a versão inicial de Clara Crocodilo.
Arrigo, com a camisa do LEC, no festival da Tupi, em SP, 1979

Mas o livro faz um panorama extenso e ramificado de toda o contexto social, político e cultural que fez essa geração germinar e aparecer para o Brasil e o mundo. Desde que o livro chegou as minhas mãos ontem à noite, através da Adri, que não consigo desgrudar dele, e mesmo só tendo dado uma passada superficial a cada página que abro é uma descoberta e uma surpresa. Uma delas, por exemplo, foi saber que o Nego Dito, antes de se radicar em Arapongas, de onde seguiria para Londrina após iniciar seu envolvimento com teatro e música, teve como primeira morada no Norte do Paraná, para onde veio depois que sua avô, com quem ele morava no interior de São Paulo, morreu, nada mais nada menos que minha cidade natal, Paranavaí, onde o pai de Itamar trabalhava como fiscal do IBC (Instituto Brasileiro do Café).

Benedito Santos Silva Beleléu vulgo Nego Dito cascavé

Também é interessante saber que um dos gurus desse pessoal todo foi o maestro tropicalista Rogério Duprat, de quem partiu a primeira proposta para que eles fossem pra São Paulo, onde gravariam seus primeiros discos. E foi por isso que eles acabaram taxados de “Vanguarda Paulista”. Porque foi lá que eles se tornaram conhecidos do Brasil. Mas toda a gestação do “projeto musical” desse pessoal na verdade se deu no Norte do Paraná. Tanto que o Arrigo fez questão de em um festival da extinta TV Tupi de São Paulo, tocar com a camiseta do Londrina Esporte Clube (LEC), como aparece em uma das fotos do livro. E é muito legal perceber que muito daquilo que a gente pensa, sonha, luta, persegue já tinha um paralelo nessa geração, que por sua vez tinha na geração do Duprat, que desafiou as fronteiras do erudito/popular, do bom/mau gosto, do cafona/sofisticado, da caretice/maluquice, também uma referência básica.

“O paranaense Arrigo Barnabé, então obscuro estudante de música da USP não vacilou. Mesmo sob o ardil da vaia. Sua participação no 1º Festival Universitário da Música Brasileira promovido em São Paulo pela TV Cultura, causou espécie. Bombástico no palco, desconhecido no vídeo (ainda) inédito em disco. Entrava para a história arrombando a festa e a casa grande do latifúndio MPB. Saíam os repertórios redundantes, as melodias com intervalos regulares, a reprodução deliberada das técnicas usuais, dos jeitos e trejeitos do cancioneiro. A histórica e nacionalmente desgastada “fórmula festival” renovada em TV pública. Nada dos óbvios e abomináveis refrões, do instrumental previsível e da simpatia mecânica, característicos nesse tipo de disputa. A aparição de Arrigo e seu arsenal sonoro, pelo contrário, beirou o insólito, o imprevisível, a polêmica. Inventor de uma nova sintaxe musical acabou esgrimindo com a preguiça mental da platéia: “O público quanto tem que pensar estranha”.
(trecho do livro Na boca do Bode)

“Fizemos um grande manifesto, etc. Mas aí foi na volta, exatamente, na volta desse trabalho em que fui lá, "mamar" nas tetas culturais, é que a gente viu lá os "cagistas", aqueles caras ligados ao John Cage (músico concrestista americano). E descobrimos, então, toda uma fatia de produção ligada ao acaso, ao happening, essa coisa, e começamos a fazer isso aqui. Eu, o Júlio Medaglia, o Damiano Cozzela, o pessoal que assinou aquele tal manifesto. Esse manifesto dizia exatamente isto: "chega desse negócio de coisinha da música erudita enfiada só dentro do teatro, pra meia dúzia de milionários e tal. A gente tem é que sair para a rua, fazer música na rua com os meios que houver; se forem bons ou maus, isso é outra coisa. Mas fazer o que for possível". E aí que me aproximei deliberadamente da música popular”.(...)Eu tenha uma composição que se chama "Organismo", que vai ser gravada provavelmente nos próximos meses. Era nesse tipo aí, bouleziana, tudo era seriado, estruturação dos sons, a reunião dos sons, a reunião dos grupos, o jeito de cantar, porque também tinha canto. E, aí, o Zappa passou lá e botou, jogou merda no ventilador. O Zappa e outros amigos deles. Ninguém conhecia o Frank Zappa, ele não fazia, não tinha formado os Mothers of Invention, uma coisa caralhal... Não sei se já se já chegaram a ouvir... espetacular. Mas ele estava prestes a fazer isso, mais tarde, às... . Quando nós chegamos, mais tarde, em 69, que eu fui vê-lo em Nova York, já era 69. Enfim, essa geração, aí, que está hoje beirando os 70 anos, como eu, 68 anos, é que fez essa mistura toda. Então, tudo virou uma coisa só. Não tem esse negócio que tem música erudita, tem música popular; não sei o que, é som aí.
Rogério Duprat em entrevista ao Trabalho Sujo


Outra história legal do livro é sobre o festival “Colher de Chá”, que levou para Cambé, cidade próxima a Londrina, nada mais nada menos que os Mutantes, já sem Rita Lee mas ainda com a formação básica, Arnaldo, Sérgio, Liminha e Dinho.

Arnaldo Baptista, com os Mutantes, em Cambé (1973), no festival "Colher de Chá"

Enfim, ao descobrir tanta coisa que está aí, tão próxima da gente e tão escondida me vem a mente muitas outras coisas. Como a gente teima em estar tão preocupado com o que anda rolando em Londres, sem enxergar aquilo que está acontecendo ao nosso lado, no nosso quintal, no nosso vizinho, no nosso bairro, cidade, estado, País. Essa inconsciência e alienação é um freio invisível em nossa evolução. Afinal, se não desvendamos nem o Leminski, ícone máximo da cultura paranaense, como esperar que as pessoas hoje (sejam os mass média ou o público médio) dêem atenção ao ruído/mm, ou ao Terminal Guadalupe, ou ao OAEOZ?Quantos de nós lemos de verdade um livro inteiro do cara? Quantos já ouviram uma composição do Waltel Branco, que de Paranaguá correu o mundo como maestro, arranjador dos discos do João Gilberto, trabalhou com Henri Mancini e Stravinski, produziu discos de novela, da jovem guarda ou de ídolos populares como Odair José? Quem é Inami Custódio Pinto? E Anatilde Julião? Alguém já ouviu falar do professor Heriberto Ivan Machado e do livro “Futebol do Paraná” - 100 anos de História? Alguém lembra que os Mutantes tocaram em Curitiba ainda com a formação original nos anos 60? E que o Beijo AA Força dividia palcos com a Legião Urbana, o Fellini e o Sexo Explícito nos anos 80? Contrabanda? Opinião Pública? Carne Podre? Fumou um na casa branca da “Chave”? Tomou umas com o Marcos Prado?

Mas uma coisa nisso tudo me anima. É imaginar que de alguma forma a gente tá ajudando ou pelo menos tentando ajudar a mudar um pouquinho essa mentalidade vira-lata, coitadística. E perceber como é importante a gente também contar e registrar as nossas histórias. Seja com os vídeos do Rock de Inverno, as fotos dos shows, as gravações, os discos, os textos, as poesias. A gente vai passar, mas todo esse material vai ficar pra quem quiser descobrir, no futuro, o que um grupo de malucos dessa cidade tava fazendo pra passar o tempo e tornar a vida menos árida, menos medíocre e modorrenta. Estamos vivos e isso é bom, e eu quero descobrir mais, conhecer mais, produzir mais, registrar mais, e viver mais. Porque parodiando o Chacal, o tempo é curto, mas a vida não pode ser pequena.

9 comentários:

Anônimo disse...

lindo isso...arrepia...e dá uma sede...grande abraço, anarquista (pra não ter que rotular o inevitável).

Anônimo disse...

Du caralho, Ivan. Tô com o livro aqui e gosto muito também. Ainda não li inteiro por falta de tempo, mas é mesmo du caralho. Grande abraço.

Anônimo disse...

pois é. tô aqui tomando um vinho e ouvindo patife. ontem ouvimos itamar e tubarões voadores do arrigo. ouvir os caras só confirma tudo isso. abração.

Anônimo disse...

anômimo nada. sou eu

Anônimo disse...

não, eu

Anônimo disse...

"nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada. inevitavelmente parasita"

De Inverno disse...

teste de comentário idiota

Anônimo disse...

?

Anônimo disse...

caraio essa foi boa hein