Tive medo de ouvir “às vezes céu”.
Esse pedaço da tua vida, da vida de vocês, da minha vida,
recebi com a carta de 19 de outubro de 2004. Escrevo só hoje, dia 13 de janeiro
de 2005, às 23h37min. Se não me tivesse pego no telefonema daquela manhã
seguinte de ressaca, talvez estivesse fugindo ainda. Pois escrevo então para me
desculpar por não conseguir escrever. Não tenho distanciamento nenhum. E
qualquer parâmetro só consigo traçar com minha megalomania. A primeira vez que
ouvi o cd um tsunami de lembranças me lavou. E “lembranças não valem nada...”,
tu disse. Mas meus olhos transbordaram de leve, orgulhoso. E consegui ver um
pouco além mim. Pensar nas plantas que não cuido. Voltar a gostar de música. Me
empolgar numa noite sem coca... aquele que “não compra tantas brigas, não sorri
como sorria”, como disse eu... pelo menos riu sozinho em “um momento suspenso
no tempo.. um olhar que escapa num segundo, esconde nossas histórias, a vontade
e a coragem de se entregar”, como tu disse.
“Alguns dizem que tenho talento pra melancolia”, tu também
disse. Mas saber-se diferente mas igual ao que se sabe que é o que se deve ser
pra ser a si próprio é um alívio. E “às vezes céu” me deu esse abraço. “E
sempre tem alguém te tentando te botar pra baixo... mas quando a gente fecha a
porta e tudo fica lá fora: tudo parece simples, tudo parece certo”, tu disse.
Nem um Don não tem dúvidas. Sabes por ti, acho. “Não acredito em quem diz não
sentir medo”, tu disse.
Precisamos de algum contato. “Não somos só nós”, eu disse. E
ouvir o disco me fez conectado com algo, me fez confirmar que a arte é vida,
não é só um canal, um meio, um estilo, uma fuga ou um refúgio. Ter convivido um
pouco contigo e depois ouvir o trabalho pronto me tirou qualquer dúvida sobre a
teoria de que esses mundos que criamos é que são a expressão do que acontece
por aí. Esses paraísos e infernos não-rebaixados, marginais... esses documentos
que deixamos sob uma ótica não comprometida com a sobrevivência... são a
história. Quem poderia contá-la por nós?
E “às vezes céu” é um livro, a biografia de um híbrido de
alguém que se pareceria com nós todos, um pouco de cada... “a gente faz um
mundo só pra gente”, tu disse. Só que “ao abrir os olhos de manhã meu mundo
desapareceu”, tu disse também. E “às vezes céu” me fez perder algum tempo
falando sozinho, preenchendo o que era o vazio aluguel entre meu abrir e fechar
de olhos. E o dia não passou tão rápido... e tudo por não se sentir só. E
aquele que achava não precisar de uma confirmação sobre si mesmo sorriu ao
recebê-la de quem admira. Não numa encomenda, mas num símbolo __ construído
antes e depois __ de uma vida de semelhantes sonhos reais. Onde se dá, a toda
essa doação, valor. Diferente dos mergulhos ali, logo além da “distância que
dura mais ou menos dois copos” onde “depois me solto e sou capaz de ir pra casa
mais próxima, com quem quer que seja, em busca de um pouco mais”.
Gosto muito de “às vezes céu”, como gosto de ti. És um
artista que respeito. És um dos únicos artistas brasileiros dos quais não tenho
vergonha, pena ou desprezo. Daí espero que tenhas consideração por esse desabafo
e esse pedido de desculpas por não mandar para ti uma resenha tradicional __
como, talvez, esperavas. “E agora sozinho, sou apenas mais um cara, o papel em
branco, a caneta, um cigarro, um trago... não existe fim”, tu disse.
É isso? E minha cabeça está virada. Queremos ter um filho.
“Já faz algum tempo que eu sai de casa”, tu disse. Mas, cara, que letras...
E parabéns pelo bom gosto de todos na tradução dessas
poesias para as canções. Grandes simples arranjos. Deixo uma pra ti, feita nos
dias depois de ouvir “às vezes céu”:
“Sobrenome
Meu sobrenome é talvez
é esquecimento
é nunca foi
é poderia ter sido
e eu aqui
nem lembro a idade que tenho
nada mais pra dizer
desapaixonado
mal-agradecido com o que é e onde está
sonhavas com menos, lembra?
e o que queríamos ontem
estava lá
mas já não era o suficiente, lembra?
rir
do que?
Embarco em outra viagem do ego
se não sou quem pensava que fosse
quem é?”
Um abraço pra ti, amigo Ivan, outro para a amiga Adri, e
também para
os amigos Rodrigo, Carlão, Camarão e André. “A dor e a
verdade num
riso contigo... a cumplicidade... um mar dividido...”, tu
disse.
A minha verdade também não me ajuda. Mas isso é bênção,
acho. Tu sabe.
E sei que me perdoas. Até.
Rafael Martinelli
(texto incluído no press-kit de divulgação do CD "Às vezes céu", escrito pelo vocalista da banda Deus e o Diabo (RS), hoje atuando na banda EX)
Um comentário:
Dez anos em cinco minutos. Obrigado por me proporcionarem isso neste momento. Saudade!
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