Acordei querendo estar disposta hoje. Mas, a chuva, essa
chuva que começou quieta sem que a gente percebesse durante o sono escuro do
dia, tomou conta de tudo e deu seu próprio ritmo à vida deste dia. Cai pesada,
enquanto no quarto fechado eu olho as madeiras finas do forro do teto,
manchadas pelo mofo que cria formas pequenas, ora mais escuras, noutras mais
claras. Choveu tanto que divido o já pequeno espaço que sobra entre a cama e o
guarda-roupa com baldes e bacias que não protegem o velho taco dos pingos que, por sua vez, não respeitam as telhas e escapam pra dentro do
quarto, ainda com cheiro de sexo e janelas fechadas. Olho para ele que não
dorme ao meu lado – mas mantém o travesseiro cobrindo parte do rosto. É quase
meio-dia. Eu tento escrever mais uma vez!
Mas, é tanta confusão!
Você, por exemplo. Mas sobre você não quero escrever. Hoje,
não! Não, agora!
Eles. Mas, eles são tantos e tão importantes. E, também, são
tão sem importância. É por todos esses não seis dentro de mim que vivo sem
rumo. Não sou eu, no final das contas. São as lembranças. Apenas elas, sempre,
que me tumultuam. E embora tenham um sentido dentro de mim, escapam dos
argumentos todo o tempo. E quando escapam levam também as histórias.
Mas hoje decidi abrir aquela caixa branca. Empurrada,
procurei uma história para contar. Uma só – é o que preciso agora. Do começo.
Ao fim. Construindo um meio com meias verdades não vividas. E tem as mentiras,
carinhosamente saboreadas em pequenas doses falseadas diariamente.
Uma história – pode até ser uma que você já contou. Ou
tentou, ao menos. Ela abre a caixa branca e vira... eu. Nem ela, nem eu. Só uma
lembrança, quase apagada. Nem as fotos estão ali.Só as letras, dedicadas e
redondas. Letras de crianças. Que sabiam de tudo.
Vasculho todos os cantos, os poros abertos atrás das marcas.
O primeiro amor, que brotou do primeiro amigo. Dalto s. A letra dele,
irregular, mas melhor que a minha, me joga pra dentro de memórias que não sei se ele guardou. Seriam elas, para ele, lembranças que não valem nada? Será mesmo
que chegaram a existir? Nem isso, talvez. Mas, pra mim, são como as páginas de
um livro de capa dura que trazem de volta bonecas coloridas e espigas de milho. Ele usava
óculos. Será que foi aí que comecei a ligar o objeto a pessoas inteligentes?!!?
Foi uma das primeiras conclusões que lembro ter tirado.
Lembro também que muito cedo me dei conta que jamais amaria
alguém plenamente – se é que isso existe. Hoje é tudo confuso, mas ás vezes
lembro destas percepções prematuras e incompreensíveis. Mas, incrível, lembro até que
estava no alto do morro barrento que levava à
escola. Não tinha geada, então não era inverno. Tinha brigado, de novo, com minha melhor amiga, e fui acometida por
uma sensação estranha de ter uma certeza estarrecedora: a impossibilidade, tão
cristalina naquele momento, da entrega total a alguém. Era certo pra mim que
jamais amaria alguém plenamente, acima de tudo – e colocava nesse baú o amor por
todas as pessoas, não aquele outro. Parecia, não sei, que isso tinha a ver com
as partidas e despedidas que eu já pressentia nunca saem da gente.
Mas, contudo, eu achei que o amava. O primeiro amigo. E era
um amor tão puro – tanto que nem amor era! E tão distante, como sempre me
pareceriam todos os (poucos) amores que tive depois. Um amor amado em segredo,
que era sem ser. Só depois percebi que não era o
amor que eu pensei. Ele nem soube do meu amor que não era. Todos os outros
sabiam. E caçoavam da pequena enamorada. Todo dia, subíamos o morro e era exigência
dela esperar por ele em frente ao bangalô verde musgo.
Foi ele quem me conquistou. Quando me pegou pela mão e
chamou pra brincar. Do calor daquela mão pequena não lembro. Mas lembro como
hoje que o meu choro calou e todo aquele estarrecedor medo de ficar ali foi embora na mesma hora. Fui, de mãos dadas com ele,
entre outras crianças e brinquedos, e sob dois sorrisos carinhosos, da
professora e da tia.
E foi assim que há muitos e muitos anos eu dei meus segundos
primeiros passos. De mãos dadas com meu primeiro amiguinho de escola, que
pensei ser meu primeiro amor, aos seis anos de idade. Ele foi a primeira pessoa
estranha que me conquistou!
Um comentário:
Vai virar letra de musica... e eh ja!!!
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